Lobos Internos

«Um velho avô disse ao seu neto, que chegou a casa com raiva de um amigo que o tinha agredido injustamente:”Deixa que te conte uma história. Eu mesmo, algumas vezes, senti grande ódio por aqueles que me fizeram mal, todavia, o ódio corrói a quem o sente, mas não fere o teu inimigo. É o mesmo que tomar veneno, desejando que o teu inimigo morra. Lutei muitas vezes contra este sentimento". E continuou: ”É como se existissem dois lobos dentro de mim. Um deles é bom e não magoa. Vive em harmonia com todos ao redor dele e não se ofende quando percebe que apesar da mágoa, o ofensor não teve verdadeiramente intenção de ofender. Ele só lutará quando for acertado fazê-lo, e fá-lo da maneira correta. Mas, o outro lobo, ah! esse é cheio de raiva. Mesmo as pequeninas coisas o lançam num ataque de ira! Ele luta contra todos, o tempo todo, sem qualquer motivo. Ele não para para pensar porque a sua raiva e seu ódio são muito grandes. É uma raiva inútil, pois essa raiva não irá mudar coisa alguma! Algumas vezes é difícil de conviver com estes dois lobos dentro de mim, pois ambos tentam dominar meu espírito". O miúdo, então, olhou intensamente para o seu avô e perguntou: "Qual deles vence, avô?" O avô sorriu e respondeu baixinho: "Aquele que eu alimento".»

Ando em maré de histórias. E não é por acaso. É porque, depois de ter «arrumado», ou «desarrumado» as minhas prioridades, dei por ela que o essencial se diz em poucas palavras e com testemunhos vivos. Como as histórias, por exemplo. E esta, admito, diz-me muito.

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È um facto assente que todos nós temos «lobos internos». Que temos «dois» lados que nos puxam com igual força. Que na vida real ninguém é sempre bom, ou sempre mau, sempre «certinho» ou sempre «pecador». Na vida real somos pessoas normais, que podem ser tudo, dependendo das circunstâncias.

Dei comigo um destes dias a pensar que julgar os outros é uma perfeita estupidez. Já nem digo – porque é evidente! – que todos temos telhados de vidro. Não é por isso apenas. É porque estou cada vez mais convencida que não sabemos concretamente os nossos limites. Que só na hora do teste poderemos, com 100% de certeza optar pelo «lobo manso» ou pelo «lobo feroz». Que as decisões da vida, as que nos marcam, por vezes são tomadas no calor de um impulso, de um sentimento ou de uma paixão. Que nem sempre o lado racional e sensato, que nos norteia, leva a melhor. Que há alturas em que as circunstâncias nos levam a fazer o que jamais pensávamos ser capazes de fazer.

Sim, o homem é os seus valores, é os seus preconceitos e é também as suas circunstâncias. E mais ainda: ninguém é sempre igual, porque cada ser humano está em contínua mudança. Ás vezes nem nos apercebemos, mas se olharmos cinco ou dez anos atrás na nossa vida percebemos, se formos pessoas normais, que já não pensamos, sentimos ou reagimos da mesma maneira. Imaginem, agora, o que uma mudança radical pode provocar na vida de uma pessoa. O impacto pode ser tão forte que nada sobre da antiga personalidade. Um «lobo manso» pode transformar-se em feroz e vice-versa, num piscar de olhos.

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Eu hoje digo que nem por mim ponho a mão no fogo, ou seja, não posso garantir que aquilo que hoje me serve, amanhã não seja posto em causa. Que o que hoje faço ou não faço, amanhã não seja o inverso. Deixei-me de ingenuidades. Só na hora de agir serei a minha opção. É bom (essencial até) ter bases firmes para a hora «da crise». Mas, lamento dizer que até essas bases podem não ser suficientes, tal como uma barreira de troncos que, mesmo forte e segura, não pode parar a enxurrada de um rio.

Todos temos dois lobos a habitar as cavernas da alma. Ambos comem da mesma «tigela». Ambos dormem lado a lado. São irmãos gémeos, mas que aparecem vez à vez. E jogam com a alma. Puxam-na para um lado, arrastam-na para outro. Tentam ser vencedores num jogo sem tréguas, porque dura o tempo de uma vida.

Por isso repito: para quê julgar os outros se, no fundo, perante as mesmas circunstâncias de vida da pessoa em causa, não sabemos qual seria a nossa reação?

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Não há verdades absolutas (essas são dogmas, logo produtos intelectuais que alguém criou para nos influenciar ou manusear para um lado provável da verdade), não há seguranças (nenhumas e a nenhum nível. Viver é um exercício de risco contínuo), não há moedas com um só lado. Tudo tem dois lados, mesmo o que normalmente consideramos de «bem» ou de «mal». Então, resta perguntar, qual é o nosso poder real sobre a vida? Só temos um. O essencial: a liberdade de optar pelo lobo que desejamos. A liberdade de escolher alimentar um ou outro. A liberdade de errar ou acertar, de escolher bem ou escolher mal, dependendo do momento, das circunstâncias e das tais «bases» que funcionam como barreiras. Mais nada…

Por isso, acredite em mim, amigo leitor. Não critique, não julgue, não atire pedras. Faça como o maior Mestre da vida que, um dia, perante uma mulher adúltera prestes a ser apedrejada pelos hipócritas dos fariseus (Deus do céu, e como eles continuam a abundar por aí!), se limitou a dizer: «quem estiver livre de culpas, atire a primeira pedra». Grande lição de humildade, compaixão e perdão que Deus deu aos homens…

Reprodução
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Eu habito com os meus dois lobos. Ambos são fortes, vigorosos e persistentes. Mas sabem um segredo? Quando tento alimentar um deles, fico sem saber qual o manso e qual o feroz. É que, por fora, ambos são exatamente iguais. A base que os nutre é mesma (a razão e o coração) por isso, normalmente, só os distingo a nível das consequências. O manso não causa estragos. O feroz sim. O manso não me deixa um peso na consciência, o feroz sim. E poderia continuar indefinidamente, mas acho que me fiz entender.

Já vivi o suficiente para não me atrever a «matar» nenhum deles, sabem. Ambos são indispensáveis. Mas a verdade é uma… compete-me a mim, e a mais ninguém, saber as doses de alimento que lhes quero dar, porque o a questão aqui não é alimentar só um, como a história acima conta. Deixem-me ser um pouco revolucionária e dizer: o «segredo» está na dose certa de alimento que cada lobo «ingere». No equilíbrio, está a medida certa. Na margem de erro está a nossa capacidade de perceber que, julgar os outros, é tão inútil e ridículo como alguém afirmar: «Eu? Eu posso atirar a pedra…eu não tenho pecados». Atreve-se, amigo leitor a fazer tal afirmação? Eu, sinceramente, não. Eu sei, porque sei, que tenho mesmo dois lobos dentro de mim…